
A Tese 62 de Lutero diz: “O verdadeiro
tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus”. É
correto afirmar que a graça de Deus abrange todas as coisas, pois para qualquer
coisa existente, se não houvesse a graça de Deus não teria a mínima graça.
A graça e a salvação
A graça de Deus é o cerne do Evangelho o qual existe desde o Antigo Testamento
(Gl 3.8). Sendo assim, a salvação sempre foi apregoada pela graça de Deus.
A graça de Deus, segundo alguns, completa aquilo que faltava no pecador. Essa
visão é totalmente errônea, pois o Homem, sendo um pecador, não há nada nele
que possa ser utilizado se não fora dado pela própria graça de Deus. Como Deus
nos diz: “Ó vós, todos os que tendes sede, vinde às águas, e os que não
tendes dinheiro, vinde, comprai, e comei; sim, vinde e comprai, sem dinheiro e
sem preço, vinho e leite” (Is 55.1). Veja que a graça é oferecida aos
que não tem dinheiro, e não aos que não tem dinheiro suficiente.
A graça de Deus salvadora é concedida a todos quantos por quem Seu Filho morreu
para remir toda a iniquidade, e purificar para si um povo todo seu, zeloso de
boas obras (Tt 2.14). E esses mesmos a quem a graça se revela são os mesmos que
Deus estava irado, os quais, segundo o apóstolo, não eram justos, não
entendiam, não buscavam a Deus, não faziam o bem e nem havia um sequer que o
fizesse (Rm 3.10-12). Ou seja, a graça de Deus ninguém merece, mas Deus nos
concede pela sua misericórdia, onde que, Cristo satisfez a ira de Deus em nosso
lugar. Portanto, só reconheceremos a graça de Deus na salvação quando
entendermos realmente quem é a humanidade: “A imaginação do coração do
homem é má desde a sua meninice” (Gn 8.21); “Eis que eu nasci
em iniquidade, e em pecado me concedeu minha mãe” (Sl 51.5); “Todos
nós andávamos desgarrados como ovelhas, cada um se desviava pelo seu caminho;
mas o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós” (Is 53.6).
Sendo assim, podemos ver que:
- A graça de Deus deve ser retratada no contexto de que nós já
fomos inimigos de Deus, merecedores do inferno eterno.
- A graça de Deus age sem ver o pecador com mais ou menos
merecimento, mas trata a pessoa sem qualquer referência de merecimento e
segundo a bondade de Deus infinita.
- A graça de Deus não é meritória. Não fizemos nada para
merecê-la. Éramos devedores de Deus, devíamos um valor altíssimo, mas Deus
perdoou a nossa dívida.
- Como já vimos, não fizemos nada para que a merecesse. Mas
recebemos a graça de Deus para que façamos boas obras. As nossas boas obras são
frutos desta graça Divina. Sendo assim, fomos justificados pela graça de Deus e
não pelas obras (Rm 3.24).
- A graça não passou a existir com a vinda de Cristo, porque a
graça é eterna, como o próprio Paulo diz: “não segundo as nossas obras,
mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo
Jesus, antes dos tempos eternos, e manifestada, agora, pelo aparecimento de
nosso Salvador Cristo Jesus, o qual não só destruiu a morte, como trouxe à luz
a vida e a imortalidade, mediante o evangelho” (2Tm 1.9,10).
- O fato da graça de Deus ser não meritória mostra claramente
que Deus é soberano, não sendo obrigado a derramar essa graça sobre todos.
Pois, se Deus fosse obrigado a derramar a graça sobre toda a humanidade, logo,
a graça já não seria graça.
- Por fim, a graça de Deus atua em toda a nossa salvação. Pois
fomos eleitos pela graça de Deus (Rm 11.5), a nossa regeneração foi pela graça
(Ef 2.5; Tt 3.5-7), a nossa redenção (2Co 8.9; Ef 1.7), nossa justificação (Rm
3.24), de fato, toda a nossa salvação é pela graça de Deus (Ef 2.8).
A graça comum
Alguns teólogos reformados negam a graça comum de Deus, por entenderem
que; se Deus age graciosamente (graça providencial) Ele deverá amar todas as
pessoas indistintamente. Outros negam o termo graça comum pelo fato da
Bíblia não mostrar que Deus dê a sua graça aos ímpios não eleitos. Mas isso é
brigar por definição de termo, sendo que, o fim é o mesmo. Nós não podemos
negar que Deus dê benefícios para todos os povos, sendo que, há pessoas entre
esses povos que não serão salvas, mas são beneficiadas pela graça de Deus. Como
vimos acima, graça é uma dadiva de Deus a um pecador que não merece nada de
Deus. Sendo assim, todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus, e mesmo
assim, Deus concede dons e talentos a cada pecador, como esses textos nos
mostram:
“E Ada deu à luz a Jabal; este foi o pai dos que habitam em tendas e têm
gado” (Gn 4.20);
“E o nome do seu irmão era Jubal; este foi o pai de todos os que tocam harpa
e órgão” (Gn 4.21);
“E Zilá também deu à luz a Tubalcaim, mestre de toda a obra de cobre e
ferro; e a irmã de Tubalcaim foi Noema” (Gn 4.22);
Em meio ao endurecimento progressivo do pecado – poligamia e a vingança
grosseira e injusta – Deus concede dons e talentos quanto a extensão do mandato
cultura, desde agricultura animal (Gn 4.20) às artes (Gn 4.21) e às ciências
(Gn 4.22). Como Deus concede tais graças à uma descendência ímpia? Não sei, mas
isso se chama graça comum. Da mesma forma como mostra o nosso Senhor Jesus que
Deus “faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre
justos e injustos” (Mt 5.45).
Sendo assim, não podemos confundir graça comum com a graça salvadora mostrada
acima, como nos mostra Michael Horton:
A graça comum beneficia a humanidade caída em termos da presente
época, mas não traz a era futura, ou seja, não faz acontecer o reino de Deus.
Não salva os malfeitores do juízo vindouro, nem redime a arte, a cultura, o
estado ou as famílias. Diferente da graça salvadora. A graça comum se restringe
ao mundo atual até o dia do juízo e não impedirá a mão de Deus de agir com
justiça naquele temível dia.[1]
Quanto a nós cristãos, não devemos menosprezar a
graça comum, pois além de recebermos a graça salvadora nós temos a graça comum
em nossas vidas antes mesmo de aceitarmos a fé. Mas a questão é que todos os
nossos atos, frutos desta graça comum, não devem ser para o nosso prazer
último. Mas que os nossos atos devem ser feitos visando à glória de Deus,
mostrando em nossos feitos uma vida redimida pelo Santo Espirito de Deus.
Certa feita um sapateiro perguntou a Lutero “de que forma poderia servir a Deus
da melhor maneira”, Lutero respondeu: “Faça um bom sapato e venda por um preço
justo”. A graça comum que recebemos antes de nossa conversão, agora, depois de
converso, deve ser mostrada em dignidade e em conformidade com o Evangelho.
Se vestindo da graça
“Porque a graça salvadora de Deus se há manifestado a todos os homens.
Ensinando-nos que, renunciando à impiedade e às concupiscências mundanas,
vivamos neste presente século sóbria, e justa, e piamente.” - Tito
2.11,12
Vimos sobre a graça de Deus na salvação, como ela atua na salvação do pecador e
vimos sobre a graça de Deus como providência geral na humanidade. Agora,
tentarei mostrar a graça de Deus na vida dos eleitos. O texto acima nos mostra
que a graça de Deus nos ensina a dizer “não” para a impiedade e para as paixões
mundanas, para poder viver no século presente uma vida piedosa. No entanto,
quero focar em cinco características que são relacionados à graça: a gratidão,
o contentamento, a humildade, a paciência e o perdão.[2]
A) Gratidão
“Entrai pelas portas dele com gratidão, e em seus átrios com louvor;
louvai-o, e bendizei o seu nome. Porque o Senhor é bom, e eterna a sua
misericórdia; e a sua verdade dura de geração em geração.” - Salmo
100.4,5
A primeira característica que deve fluir por causa da graça de Deus é a
gratidão a Ele. Tudo o que somos e tudo o que fazemos são frutos da graça de
Deus em nós, por isso devemos ser gratos a Deus. Ser grato a Deus é reconhecer
o Seu cuidado em nós, tanto a sua bondade quanto a sua fidelidade. Não ser
grato a Deus reflete a nossa imoralidade, como o próprio Paulo disse: “Porquanto,
tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças,
antes em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se
obscureceu” (Rm 1.21). Glorificar a Deus é reconhecer a majestade e
dignidade de Sua pessoa. Dar graças a Deus é reconhecer a generosidade de Suas
mãos em suprir-nos e cuidar de nós. Se a nossa vida não é de gratidão a Deus,
nós, possivelmente, estamos servindo a outro deus que não é o Deus Todo
Poderoso.
B) Contentamento
“De fato, grande fonte de lucro é a piedade com o contentamento.”
- 1 Timóteo 6.6
O contentamento é uma forma de mostrar que o coração está centrado em Deus.
Pois, quando o pecador redimido entende realmente que foi alcançado pela graça
de Deus, sem a qual não poderia nem viver neste mundo feito por Ele, tal
pecador se contenta com aquilo que Deus lhe deu. Agora, quando estamos
descontentes com algo, isso expressa a nossa ingratidão com Deus, passando a
viver pelas obras e achando que merecemos mais do que recebemos. Um espírito
pobre prestigia as riquezas do mundo estando descontente. Mas uma alma viva
pela graça de Deus flui o contentamento, reconhecendo que não recebe o que
realmente merece, mas diariamente recebe aquilo que não merecia.
C) Humildade
“Porque todo o que se exalta, será humilhado; mas o que se humilha, será
exaltado.” - Lucas 18.14
Humildade não significa que temos que negar o que há de bom em nós, mas sim,
entender que o que há de bom em nós só existe porque isso é devido à graça de
Deus. A humildade não é somente recomendada por Deus (Is 57.15; 66.1,2), como
também, a humildade foi exibida plenamente em Seu Único Filho: “E,
reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente ate
a morte, e morte de cruz” (Fp 2.7,8). Sendo assim, quando olhamos para a
graça de Deus temos que ter em mente o que disse o apóstolo: “Porque,
quem te faz diferente? E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o
recebeste, por que te glorias, como se não o houveras recebido?” (1Co
4.7). Toda habilidade e toda vantagem que temos vem do próprio Deus e foram nos
dada para servimos a Deus, e não nos gloriarmos naquilo que não merecíamos.
D) Paciência
“Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus, santos e amados, de entranhas de…
longanimidade.” - Colossenses 3.12
A paciência na Bíblia é muitas vezes retratada como longanimidade (tardio em
irar-se). Todas as vezes que não somos pacientes nós estamos mostrando que
não merecíamos a longanimidade de Deus. Pois, Deus sendo eternamente justo,
tinha todas as razões para que nos lançássemos ao inferno. Portanto, para um
crente que reconheceu a graça de Deus em sua vida ele buscará a todo momento
essa paciência com seu próximo, pois a paciência é acompanhada da unidade,
carinho e amor (Ef 4.1-3).
E) Perdão
“… perdoando-vos uns aos outros.” - Colossenses 3.13
O perdão está acompanhado da paciência, porque se nós formos pacientes,
saberemos perdoar. Porque, este pecador redimido entende que Deus foi longânimo
e perdoador. Pois, éramos fortes candidatos ao inferno, mas Deus nos perdoou de
toda iniquidade e continua nos perdoando. Logo, a oração do Pai Nosso retrata
bem o perdão de Deus em nossas vidas quando diz: “E perdoa-nos as
nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores” (Mt
6.12). Se nós entendemos de fato a graça de Deus em nossas vidas, nós
perdoaremos o nosso próximo que erra da mesma forma que nós.
Conclusão
A graça de Deus está em nossas vidas desde o momento em que Deus permitiu que
mais um pecador nascesse nesta criação feita por Deus. A nossa concepção foi
por causa da graça de Deus, todo o trabalho que o médico teve em conduzir o
parto foi pela graça de Deus que nos atingiu. A nossa vida familiar, no
trabalho e/ou na igreja é por causa da graça de Deus. Se não fosse a graça de
Deus não teria a mínima graça. A compreensão desta graça que Deus concede, nos
ajuda a entender o tamanho deste Deus e como Ele é bom, pois Deus age em todas
as coisas para a Sua própria glória, até por meio de algumas coisas que não
entendemos, Deus age graciosamente.
_________
Notas:
[1] HORTON, Michael. Bom demais para ser
verdade: encontrando esperança num mundo de ilusão. Tradução: Elizabeth
Gomes. São José dos Campos [SP]: Editora Fiel, 2013, p. 109.
[2] Essa divisão foi proposta pelo escritor Jerry
Bridges em seu livro Graça que transforma. Tradução: Elizabeth Stowell
Charles Gomes [SP]: Cultura Cristã, 2007, p.194