
Preliminarmente
A cada ano verifica-se o quanto a Igreja está
se distanciando das “Antigas Doutrinas da Graça”, tão caras e defendidas pelo
apóstolo Paulo, Agostinho de Hipona, os reformadores Lutero e Calvino, George Whitefield,
David Brainerd, William Carey (pai das missões modernas), J. I. Packer, John
Stott; e, porque não citar também, o “incansável defensor da fé evangélica, o
Arcebispo Thomas Bradwardine de Canterbury, durante o século 14” e tantos
outro(a)s.
Confira em sua Bíblia o que nos diz
Oséias.4:6. Talvez parte deste afastamento e falta de conhecimento se deva a
uma influência pragmática em que o valor está no resultado que dá certo, mesmo
que não seja correto; e mesmo uma filosofia relativista onde o “homem é a
medida de todas as coisas” (Protágoras-481 a.C.).
Vivenciamos uma triste realidade em que já
não vemos e ouvimos em nossas Igrejas doutrinas tais como “pecado original”,
“depravação total”, “graça”, “juízo final”, “justificação pela fé”, “soberania
divina”,... Mas, ao invés de tais ensinos bíblicos, somos obrigados a ver o
povo deixando-se iludir por sermões sobre “vida cristã” com apelos
emocionalistas, inúmeras estórias, testemunhos e nenhuma doutrina. Nada de
ensino expositivo. Acarretando no fato desses membros necessitarem de mais e
mais “alimento” pois não ficam nutridos e satisfeitos com o “feno e a palha”
que lhes são oferecidos. Ou seja, eles estão indo cada vez mais ao “shopping”
da fé, dia após dia, semana após semana atrás de “ventos de doutrinas” e
“ensinos de demônios”, tornando-se assim presas fáceis de embusteiros e
profissionais da fé. Sem contar que ficam expostos a vendas de ilusões como
apregoadas pela pretensa “teologia da prosperidade” e um “neo-pentecostalismo”
que se assemelha mais com cultos espíritas.
E considerando que nossa Diocese, este ano,
tenha escolhido o tema: “2004 – Ano do Evangelismo: Convertidos em Cristo,
Edificando a Igreja, Transformando o Mundo”, penso que a doutrina bíblica e
reformada da DEPRAVAÇÃO TOTAL deve estar no cerne de nossas mensagens, pois,
com certeza, como a entendemos e cremos irá influenciar no método que
utilizaremos para a evangelização.
Façamos a seguinte pergunta: Pode o homem
cooperar com Deus em sua salvação? Se a resposta é sim, então podemos admitir
que o propósito de Deus em salvar o homem pode ser frustrado. Mas, se a
resposta é não, compreenderemos melhor o conceito de Graça e a razão do porque
somente através dela somos salvos, uma vez que “Ele (Deus) nos deu vida,
estando nós mortos nos nossos delitos e pecados” (Ef.2:1).
A Bíblia e todas as Confissões de Fé
Reformadas são unânimes em afirmar que, depois da Queda, todo homem (no sentido
de humanidade de acordo com Gn.1:26-27) tornou-se INCAPAZ de querer qualquer
bem espiritual que agrade a Deus. Significando que este homem não possui mais
nenhuma disposição (LIVRE-ARBÍTRIO) de voltar-se, por si mesmo, à comunhão com
Seu Criador, pois devido ao pecado original, esse homem “não aceita as coisas
do Espírito de Deus, porque lhe são loucuras; e não pode entendê-las porque
elas se discernem espiritualmente” (I Co.2:14).
Quem reflete muito bem isso é Charles
Spurgeon, mais conhecido como “O Príncipe dos Pregadores”; quando afirma: “a
liberdade não pode pertencer ao arbítrio como a ponderação não pode pertencer à
eletricidade... Podemos crer em agente livre, porém o livre-arbítrio é
simplesmente ridículo”.
Logo, o homem após a Queda não perdeu sua
capacidade de fazer coisas boas, de fazer escolhas como uma profissão, o time
que deve torcer, optar em ser honesto, altruísta etc. Contudo, nenhuma dessas
coisas tem mérito em si mesmas, quando se deveria buscar sempre a Glória de
Deus. Assim, tudo isso se torna apenas aspecto secundário da vida humana. O
homem permaneceu responsável pelos seus atos, mas está escravo do pecado
rejeitando a Deus e tudo o que é do Seu agrado e Louvor. Devemos urgentemente,
“enquanto é dia” (Jo.9:4), retornar para essa sã doutrina, que resulta de
acurada e apropriada teologia bíblica.
O procedimento metodológico aqui adotado,
nada mais é, que minha confessionalidade nas Sagradas Escrituras como Palavra
de Deus autoritativa e infalível em seus ensinos numa linguagem humana (II
Tm.3:16), bem como nos XXXIX Artigos de Religião e demais Confissões
Reformadas, limitando-as em seu valor e autoridade só até onde confirmem o
ensino bíblico.
Sei o quanto essa doutrina tem gerado
acalorados debates ao longo da História do Cristianismo, vide, por exemplo,
Agostinho de Hipona e Pelágio, Lutero e Erasmo de Roterdã, Calvinistas e Arminianos
(Sínodo de Dort). Contudo, não tenho a pretensão de pormenorizar cada ponto,
muito menos esgotar esse assunto e ter assim a última palavra.
Meu objetivo principal é promover um pouco de
esclarecimento bíblico ao Povo de Deus em nossa DAR, considerando que somos uma
Igreja que se confessa Reformada. Portanto, daí o desafio de resgatarmos as
doutrinas reformadas, num momento particular em que estamos enfrentando, a
ponto de a Palavra de Deus começar a ser minimizada, questionada e reduzida num
meio de um “areópago” de ensinos humanos e em meio a uma “Babel” de linguagens
desconstrucionistas, conflitantes e refém do pensamento do século (Cl.2:8).
I – A SITUAÇÃO DO HOMEM ANTES DA QUEDA
Após ter Deus realizado a magnífica obra da
Sua Criação, conforme o registro em Gn.1:1-25, resolveu que o Jardim do Éden, e
tudo mais, deveria ser desfrutado e governado por uma criatura, cuja criação
deveria ser à Sua Imagem e Semelhança, possuindo tanto a capacidade de escolher
como viver a verdadeira liberdade.
Santo Agostinho afirmou que esse homem fora
criado, posse non peccare, ou seja, capaz de não pecar. O homem assim veio a
existir no tempo e na história, em um estado de integridade, como nos revela o
Sábio em Eclesiastes.7:29 quando nos diz: “Deus fez o homem reto...”. Portanto,
podemos concordar com o ensino claro da Escritura que o homem foi criado de
forma perfeita em termos morais, e isso é ratificado pela Confissão de Fé de
Westminster no capítulo IV – Da Criação – seção II:
“Depois de haver feito as
outras criaturas, Deus criou o homem, macho e fêmea, com almas racionais e
imortais, e dotou-os de inteligência, retidão e perfeita santidade, segundo sua
própria imagem, tendo a Lei de Deus escrita em seus corações e o poder de
cumpri-la, mas com a possibilidade de transgredi-la, sendo deixados à liberdade
de sua própria vontade, que era mutável. Além dessa lei escrita em seus
corações o preceito de não comerem da árvore da ciência do bem e do mal;
enquanto obedeceram a este preceito, foram felizes em sua comunhão com Deus e
tiveram domínio sobre as criaturas”.
Como uma criatura distinta das demais, tendo
em vista que o homem foi considerado coroa dessa criação, o mesmo era dotado de
capacidade de fazer escolhas, como também, nesse sentido, de fazê-las certas.
Como bem disse certa ocasião um teólogo reformado: “assim o homem, naquela
época, possuía a verdadeira liberdade, mas não era ainda a perfeita liberdade”.
Isso decorrente do fato dele poder cair em pecado.
Vamos conferir novamente o que nos dia a CFW
no capítulo IX – DO LIVRE-ARBÍTRIO – Seção I:
“Deus dotou a vontade do
homem de tal liberdade natural, que ela nem é forçada para o bem nem para o
mal, nem a isso é determinada por qualquer necessidade absoluta de sua
natureza”.
E ainda na Seção II:
“O homem, em seu estado de
inocência, tinha a liberdade e poder de querer e fazer aquilo que é bom e
agradável a Deus, mas mudavelmente, de sorte que pudesse cair dessa liberdade e
poder”.
Entendemos que o homem estava completamente,
antes da Queda, com suas faculdades de capacidade do livre-arbítrio, ou seja,
vivia em plena comunhão com Deus que o visitava “no Jardim pela viração do dia”
(Gn 3:8). Este homem podia conhece-lo e amá-lo, porque tudo o que fazia e
pensava era para a Glória de Deus.
Vejamos ainda o que nos diz o Catecismo de
Heidelberg, no Domingo 3 e resposta 6:
“Mas Deus criou o homem
tão mau e perverso? Não, Deus criou o homem bom e à Sua imagem, isto é, em
verdadeira justiça e santidade para conhecer corretamente a Deus, seu Criador, amá-lo
de todo o coração e viver com ele em eterna felicidade, para louvá-Lo e
glorificá-Lo”.
No Jardim do Éden o homem estava com toda sua
plena dignidade estabelecida, cujo principal propósito era todo bem espiritual
e moral que agradasse a Deus. Ele gozava de total capacidade imaculada, que
chamamos de livre-arbítrio, pois era perfeito para o bem espiritual.
II – A SITUAÇÃO DO HOMEM APÓS A QUEDA
Como vimos acima, a liberdade e o poder de
querer do homem de fazer aquilo que era agradável a Deus, mas tal liberdade era
passível de mudar se assim o quisesse. Foi justamente o que ocorreu. O homem
atraído e enganado pela serpente escolheu desobedecer a Deus, pois Satanás
tentou o homem a ponto do mesmo desejar ser igual ao seu Criador, e aí se
deixou iludir-se pela voz da serpente que disse: Porque Deus sabe que no dia em
que dele (o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal) comerdes se
abrirão vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo do bem e do mal (Gn.3:5). O
resultado foi uma verdadeira tragédia para toda a humanidade. Conforme vimos na
advertência de Deus em Gn.2:16-17, a raça humana recebeu como conseqüência
deste pecado de Adão e Eva, a morte espiritual e física, bem como, a perda
daquela capacidade (o livre-arbítrio) de querer fazer o bem e tudo que era
agradável a Deus. Dessa forma, ele se corrompeu totalmente.
Esse homem, agora após sua queda e por conta
do pecado original, se tornou incapaz de querer a Deus. Na verdade, nos porões
de seu íntimo, O rejeita deliberadamente, pois prefere agora escolher o pecado,
pois é seu senhor. E assim, neste estado de DEPRAVAÇÃO TOTAL, “não é capaz de
não pecar”.
O próprio Senhor Jesus Cristo atesta isso
quando afirmou aos judeus que discutiam com ele acerca de jamais terem sido
escravos de alguém, que “todo que comete pecado é escravo do pecado” (Jo.8:34).
O Catecismo de Heidelberg sintetiza essa
situação, no Domingo 3 resposta 7, com essas palavras:
“De onde vem, então, essa
natureza corrompida do homem? Da queda e da desobediência de nossos primeiros pais,
Adão e Eva, no paraíso. Ali, nossa natureza tornou-se tão envenenada, que todos
nós somos concebidos e nascidos em pecado”.
Isso é confirmado pelo apóstolo Paulo em
Rm.5:12 quando nos ensina que: “Portanto, como por um homem entrou o pecado no
mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por
isso que todos pecaram”.
Vejamos ainda a CFW em seu Capítulo VI e
Seção II:
“Por este pecado eles decaíram de sua retidão
original e da comunhão com Deus, e assim se tornaram mortos em pecado e
inteiramente corrompidos em todas as faculdades e partes do corpo e da alma”.
Assim, após a Queda, o homem ao invés de
preferir servir e obedecer a Deus, na verdade, se encontra “morto em seus
delitos e pecados” (Ef.2:2-3). E é isso que a teologia reformada denomina de
DEPRAVAÇÃO TOTAL. Não possui mais o livre-arbítrio para fazer a vontade de Deus
porque está morto espiritualmente, como Lázaro que estava morto com seus pés e
mãos atados e sepultado há três dias no túmulo, da mesma forma está toda a
humanidade.
Vejamos o que nos ensina o Artigo X de nossos
XXXIX Artigos de Religião:
“A condição do homem
depois da queda de Adão e Eva é tal que ele não pode converter-se e preparar-se
a si mesmo, por sua própria força natural e boas obras, para a fé e invocação a
Deus. Portanto, não temos o poder de fazer boas obras agradáveis e aceitáveis a
Deus, sem que a graça de Deus por Jesus Cristo nos preceda, para que tenhamos
boa vontade, e coopere conosco enquanto temos essa boa vontade”.
Observem essa declaração contundente do Dr.
Martyn Lloyd-Jones acerca da DEPRAVAÇÃO HUMANA, resultante da Queda:
“Por que é que o homem
sempre escolhe pecar? A resposta é que o homem abandonou a Deus, e como
resultado, toda a sua natureza tornou-se depravada e pecaminosa. Toda a
tendência do homem está distante de Deus. Por natureza, ele odeia a Deus e
sente que Deus é contrário a ele. Ele é seu próprio deus, sua própria
capacidade e poder, seu próprio desejo. Ele contesta toda a idéia de Deus e as
exigências que Deus coloca sobre ele... Além disso, o homem gosta das coisas
que Deus proibiu e as cobiça, e não gosta das coisas e do tipo de vida para as
quais Deus o chama. Essas não são meras afirmações dogmáticas. São fatos...
Eles por si só explicam a desordem moral e a feiúra que caracterizam a vida
atual em tamanha extensão”.
Não deixe de conferir o que Paulo nos ensina
em Rm.3:10-19 e Ef.2:1-3, sobre a condição do homem após a queda, e responda as
seguintes questões: Como um morto pode arrepender-se por si mesmo e crer? Como
pode o homem, cujos sentidos espirituais estão em trevas, compreender e
decidir-se por Cristo Jesus? Qual homem consegue cumprir e amar o sumário da
Lei conforme Lucas 10:27?
CONCLUSÃO
Como pudemos observar, todo o ensino bíblico
e reformado, apontam claramente para um homem que perdeu, após a Queda, a
condição e capacidade de, por ele mesmo, poder voltar-se para Deus. Todavia,
necessita de uma intervenção do próprio Deus para “os que predestinou, a esses
também justificou, e aos que justificou, a esses também glorificou” (Rm 8:30).
Lutero e Calvino sempre ensinaram e se
preocuparam em enfatizar essa doutrina, de que o homem decaído está totalmente
escravo do pecado, pois perdera a verdadeira liberdade, não podendo
converter-se a Deus desempenhando um papel ativo (cooperando) no processo que o
conduz a salvação.
Jesus Cristo afirmou certa vez que “não
quereis vir a mim para terdes vida” (Jo.5:40). Sabe por que? “A luz veio ao
mundo, mas os homens amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas obras
eram más. Pois todo aquele que pratica o mal, aborrece a luz” (Jo.3:19-20). O
ensino bíblico é que arrependimento e fé não podem ser produzidos por um
coração corrompido, pois somente “pela graça somos salvos, por meio da fé; e
isto não vem de nós, é dom de Deus” (Ef 2:8).
Portanto, se o Espírito Santo não agir
eficazmente no coração e mente desse homem corrompido, vivificando-o e
regenerando-o, ele jamais se arrependerá sozinho de seus pecados, reconhecendo
o sacrifício expiatório e vicário de Jesus Cristo.
Gosto muito dessa afirmação de feita pelo
grande expositor bíblico, Dr. Martyn Lloyd-Jones já citado anteriormente: “O
pecador não se decide por Cristo”, mas ele “foge para Cristo em total desamparo
e desespero, clamando por misericórdia: ‘Converte-me e serei convertido, porque
tu és o Senhor meu Deus’ (Jr.31:18). É como alguém que está se afogando e não
simplesmente se “decide” pegar a corda que o salvará, mas agarra-se a ela pois
é a única escapatória, a única esperança. ‘Decidir-se por Cristo’ é uma
expressão imprópria”.
Não nos enganemos quanto ao verdadeiro estado
espiritual e natureza humana. Porque estando o homem morto em seus delitos e
pecados, não será persuadido com retórica eloqüente, muito menos por apelos
emotivos (e o que preocupa hoje é justamente isso, muita gente “convencida” e
“massageada em seu ego”, e nunca convertidas realmente), uma vez que será única
e plenamente através de Deus que o homem irá “abrir seu coração” para atender a
mensagem do Evangelho, como no caso de Lídia em At.16:14.
Mas como bem afirmou Charles Spurgeon: “A
graça de Deus não viola a vontade humana, mas triunfa docemente sobre ela”
(Fp.2:13).
Busquemos aprender quanto a teologia
reformada tem a nos oferecer, com doutrinas cujas raízes são reveladas na
Sagrada Palavra de nosso Deus.
Só a Deus Toda Glória!