Falar sobre a base teológica da doutrina da
Trindade significa estabelecer conceitos que nos ajudem a entender melhor a
doutrina. É claro que jamais podemos nos esquecer que estamos lidando com algo
que ultrapassa em muito o nosso entendimento. As palavras de Calvino sobre a
Trindade são muito instrutivas nesse sentido, e servem de advertência contra
especulações:
Entendamos que se nos secretos mistérios das
Escrituras nos convém ser sóbrios e modestos, certamente este que tratamos no
presente não requer menor modéstia e sobriedade; mas é preciso estar de
sobreaviso, para que, nem nosso entendimento, nem nossa língua vá além do que a
Palavra de Deus nos tem demonstrado. Por que, como poderá o entendimento humano
compreender, com sua débil capacidade, a imensa essência de Deus, quando nem se
quer consegue determinar com certeza qual é o corpo do sol, mesmo que todos os
dias o vê com seus olhos? Assim mesmo, como poderá penetrar por si só a
essência de Deus, uma vez que não conhece nem a sua própria? Portanto, deixemos
a Deus o poder de conhecer-se. [8]
Definições
Podemos definir a doutrina da Trindade
dizendo que há somente um Deus em essência, mas que este Deus subsiste em três
pessoas distintas. Não há analogia ou ilustração que possa nos ajudar a
entender como isso é possível. No passado, os Pais da igreja acostumaram-se a
usar analogias para ajudar a entender a unidade dentro da Trindade. Falava-se,
por exemplo, da união da luz, calor e esplendor em uma só substância do sol; da
raiz, tronco e folhas de uma planta, ou mesmo do intelecto, vontade e
sentimentos na alma humana. O fato é que todas as ilustrações conseguem
acrescentar muito pouco, e às vezes, só mesmo distorcer a doutrina da Trindade.
Essência é a tradução da palavra grega “ousia”
que também pode significar substância [9], e refere-se à natureza divina. Essa
natureza essencial é compartilhada pelas três pessoas da Trindade. Quando
pensamos na raça humana, sabemos que todos compartilham a mesma natureza, a
humana, mas, cada um é um indivíduo autônomo. Compartilhamos a mesma natureza,
mas somos seres diferentes. Na Trindade há apenas uma natureza, pois há apenas
um ser. Há três pessoas, mas apenas um ser. Cada uma das três pessoas da
Trindade compartilha da mesma natureza divina, a qual é numericamente uma. São
três pessoas distintas, mas não separadas. Há apenas uma vontade, um poder, uma
mente, uma determinação, um sentimento, um ser. A essência de Deus não é
dividida entre as três pessoas da Trindade, ela é absoluta, completa e perfeita
em cada uma delas. Não são três partes de um só Deus, nem três deuses, é um
Deus, uma substância e três pessoas.
Pessoa é tradução dos termos gregos “prosopon”
e “hypostasis” ou o latino “persona” que foram usados pelos escritores
antigos para indicar as distinções da Divindade. Modernamente tem se falado em
subsistência como um termo mais adequado e livre de ambiguidades. Na verdade,
muito tempo foi gasto na tentativa de encontrar uma palavra que melhor
definisse o sentido da distinção, e isso por si só, já mostra o quanto todas
são na verdade inadequadas. O importante é que o termo essência nos fala da
unidade de Deus, enquanto que o termo pessoa ou subsistência nos fala das
distinções que existem no ser divino. Pessoa é o elemento diferenciador na
Trindade. Essência é uma, pessoas são três. Não são três modos de
manifestações, mas três existências, ou subsistências reais dentro de um único
ser. No Ser de Deus unidade e diversidade não são antônimas. Deus, em seu ser, pode
ser tri-pessoal, sem deixar de ser um.
A Trindade em essência (ontológica)
Dentro da Trindade existe absoluta igualdade
de essência, logo, não existe qualquer grau de subordinação, nem mesmo de
honra. O Pai não é maior em essência do que o Filho e nem o Filho maior do que
o Espírito Santo. O Pai não deve ser mais adorado do que o Espírito, ou o
Espírito mais do que o Filho. Entretanto, há características próprias em cada
uma das pessoas da Trindade, as quais não encontramos nas demais. Estamos
falando da Paternidade, da Filiação e da Processão.
A paternidade é uma característica exclusiva
do Pai. Nesse sentido não podemos chamar o Logos de Pai e nem o Espírito de
Pai. A paternidade do Pai é diferente da que os homens concebem por ser eterna.
Não houve um tempo em que Deus não fosse Pai. Desde toda a eternidade ele é o
Pai do Filho. O Pai se difere do Filho e do Espírito Santo por não ser gerado e
nem proceder de ninguém, e por ser o único que gera.
O Filho possui a característica exclusiva de
ser gerado. Somente o Filho é filho do Pai. Não houve um tempo em que o Filho
não existia (Mq 5.2), ele é eternamente gerado da essência do Pai. A igreja tem
historicamente afirmado que a geração do Filho é desde toda a eternidade como
um ato atemporal. Se o Pai gerou o Filho em algum momento da história, então,
isso significa que ele mudou de essência e que o Filho não é eterno em
essência. A geração do Filho não cria uma nova essência na Trindade, pois é a
mesma essência que é compartilhada tanto pelo Pai quanto pelo Filho. A Geração
é uma comunicação da essência do Pai ao Filho, num ato atemporal, que faz com
que tanto o Pai, quanto o Filho tenham vida em si mesmos (Jo 5.26).
Berkhof dá a seguinte definição da geração
do Filho: “É ato eterno e necessário da primeira pessoa da Trindade, pelo
qual ele, dentro do Ser Divino, é a base de uma segunda subsistência pessoal,
semelhante à Sua própria, e dá a esta segunda pessoa posse da essência divina
completa, sem nenhuma divisão, alienação ou mudança”. [10]
Em geral os argumentos mais usados para
dizer que Cristo não é eterno são os textos de Colossenses 1.15 e Apocalipse
3.14 que falam respectivamente de Jesus como o “primogênito” e o “princípio” da
criação de Deus. Dizem os unitários, especialmente as Testemunhas de Jeová, que
esses termos colocam Cristo como a primeira criatura de Deus, não sendo,
portanto eterna. Em Colossenses 1.15 “primogênito” da criação não pode se
referir ao primeiro ser criado, pois subentenderia que Cristo é o primeiro
filho da própria Criação, e isso não faz sentido. A interpretação mais provável
é que Cristo é o herdeiro de toda a Criação de Deus. Do mesmo modo em
Apocalipse 3.14 falar de Cristo como o primeiro por causa da palavra
“princípio” não faz justiça ao uso dessa palavra no próprio livro do
Apocalipse, pois o próprio Deus é chamado de princípio (Ap 1.8; 21.6; 22.13).
Faz muito mais sentido pensar que o texto está falando de Cristo como o mais
proeminente de toda a criação, o principal, o mais importante, o chefe (Ver Cl
1.18).
O Pai gera o Filho, o Filho é eternamente
“gerado” do Pai, e o Espírito Santo “procede” eternamente do Pai e do Filho.
Nas línguas grega e hebraica as palavras “pneuma” e “ruach”, que
são traduzidas como “espírito”, derivam de raízes que significam “soprar, respirar,
vento”. Daí a ideia do Espírito ser soprado por Deus (Jo 20.22). A doutrina de
que o Espírito “procede” do Pai e do Filho levou algum tempo para ser formulada
pela igreja, sendo que somente em 589 no Sínodo de Toledo foi formulada a
seguinte declaração de fé: “Cremos no Espírito Santo, que procede do Pai e
do Filho”. [11]
A base bíblica de que o Espírito procede do
Pai e do Filho é João 15.26, e os textos onde o Espírito é chamado de Espírito
de Cristo ou de Espírito do Filho (Rm 8.9; Gl 4.6; Fp 1.19; 1Pe 1.11). Berkhof
define a “espiração” do Espírito como sendo “o eterno e necessário ato da
primeira e da segunda pessoas da Trindade pelo qual elas, dentro do Ser Divino,
vêm a ser a base da subsistência pessoal do Espírito Santo, e propiciam à terceira
pessoa a posse da substância total da essência divina, sem nenhuma divisão,
alienação ou mudança”. [12]
A Trindade no trabalho (econômica)
Uma maneira interessante de ver a Trindade é
entender a forma como a Trindade age, não em relação a si mesma, mas em relação
à criação. Quando falamos em essência, vimos que embora haja características
próprias em cada pessoa da Trindade, não existe qualquer grau de subordinação
entre elas. Porém, quando falamos em trabalho (economia) da Trindade,
percebemos que há uma ordem como Deus trabalha. Isso nos revela bastante do
caráter Trinitário.
Jesus fez algumas declarações que certamente
poderiam nos deixar confusos se não entendêssemos a diferença de Trindade em
essência (ontológica) e Trindade econômica. Já vimos que ele disse ser um com
seu Pai, porém, em outros textos ele afirmou ser submisso ao Pai, como por
exemplo, João 6.38: “Porque desci do céu não para fazer a minha própria
vontade; e, sim, a vontade daquele que me enviou”. E também noutra ocasião
ele disse: “O Pai é maior do que eu” (Jo 14.28).
Já dissemos que de acordo com a Bíblia há
igualdade absoluta entre as pessoas da Trindade, mas então, por que Jesus disse
que o Pai era maior do que ele? Certamente porque se referia a sua encarnação e
a obra que precisava fazer. Ele foi submisso ao Pai nesse sentido, e portanto,
inferior em função, mas não em essência. Estamos agora falando das obras que se
realizam, não dentro do ser divino, mas em relação à criação, providência e
redenção. Vemos nas Escrituras algumas obras sendo mais atribuídas a uma das
pessoas da Trindade do que a outra. Entretanto, devemos tomar o cuidado para
não exagerarmos nas distinções, pois de certa forma, a Trindade participa
conjuntamente de todas as obras externas.
Não precisamos temer falar de uma
subordinação econômica do Filho ao Pai, desde que entendamos que não há
qualquer subordinação de essência. É por isso que Paulo diz: “Quero,
entretanto, que saibais ser Cristo o cabeça de todo homem, e o homem, o cabeça
da mulher, e Deus, o cabeça de Cristo” (1Co 11.3). No contexto ele está
tratando da diferença que existe entre o homem e a mulher, e da subordinação
que a mulher deve ao homem. Ele não está dizendo que a mulher é inferior ao
homem, mas que deve ser submissa e guardar as diferenças proporcionais. [13] Da
mesma forma o Pai é o cabeça de Cristo, mas isso não quer dizer que ele é
superior, pois a essência é a mesma. A questão está nas funções que são
diferentes.
Devemos evitar a formulação simplista de que
o Pai é o responsável pela Criação, o Filho pela Redenção, e o Espírito pela
santificação, pois a Trindade participa conjuntamente de tudo isso. A distinção
que podemos fazer é a seguinte: Ao Pai pertence mais o ato de planejar, ao
Filho o de mediar, e ao Espírito o de agir. Isso pode ser visto no relato da
criação.
No texto de Gênesis 1.1-3 as três pessoas da
Trindade estão agindo. O texto diz: “No princípio criou Deus os céus e a
terra” (Gn 1.1). Note que a criação é atribuída a Deus. Entretanto, em
seguida veja algumas manifestações diferentes desse Deus: “A terra, porém,
era sem forma e vazia, e o Espírito de Deus pairava sobre as águas” (Gn
1.2). Aí está a Terceira Pessoa, o “Espírito de Deus”. A maioria dos
comentaristas concorda que o Espírito Santo está numa função de “energizar” a
matéria, sendo, portanto, o ponto de contato entre Deus e a matéria. Mas, e
onde está o Filho? O Filho é a “palavra” de Deus. Foi João quem chamou Jesus de
o “verbo” de Deus (Jo 1.1). Ele é a Palavra proferida, o “haja luz”, é o
instrumento através do qual todas as coisas foram criadas. A Bíblia afirma isso
categoricamente: “Pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a
terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer
principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele” (Cl
1.16).
Portanto, podemos dizer que na obra da
criação, o Pai fala, o Filho é a Palavra falada – Mediador, e o Espírito Santo
é o agente direto sobre a matéria. Em termos semelhantes, a Trindade trabalha
na Redenção, cada pessoa executando uma tarefa particular. O Texto de 1Pedro
1.2 é claro nesse sentido, pois diz que os crentes são: “Eleitos segundo a
presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e a
aspersão do sangue de Jesus Cristo”. Aqui também o Pai é o idealizador da
salvação, pois a ele pertence o ato de escolher os que devem ser salvos. Nesse
sentido, o Pai é o autor da eleição. O Filho está novamente na função de
Mediador, ele possibilita a obediência a Deus através da aspersão de seu sangue.
Já ao Espírito Santo é indicada a tarefa de santificar, ou seja, separar para
si os eleitos. Então, o Pai elegeu, o filho salvou e o Espírito aplicou a
salvação.
Na verdade essa ordem de funções pode ser
vista por toda a Escritura: O Pai planejando a salvação (Jo 6.37-38) e
escolhendo os eleitos (Ef 1.3-4), o Filho executando o plano de Deus (Jo 17.4;
Ef 1.7), e o Espírito Santo confirmando essa obra sobre os crentes (Ef
1.13-14). De fato, como declara Lloyd-Jones, “essa é uma ideia atordoante,
ou seja, que estas três bem-aventuradas Pessoas, na bem-aventurada santíssima
Trindade, para minha salvação, quiseram dividir assim o trabalho”. [14]
Notas:
8 João Calvino. Institutas, I, 13, 21.
9 Berkhof fala da diferença entre “essência”
e “substância” e da tendência moderna de não usar os dois termos como sinônimo
pelo fato de que na igreja Oriental “substância” traduzia tanto “ousia” como
“hipostasis”, sendo, portanto, um termo ambíguo (Ver L. Berkhof. Teologia
Sistemática, p. 88-89).
10 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p.
95.
11 A igreja Oriental (Católica Ortodoxa)
nunca aceitou essa formulação.
12 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p.
98.
13 Ver Augustus N. Lopes. O Culto
Espiritual, p. 64-65.
14 D. M. Lhoyd-Jones. Deus o Pai, Deus o
Filho, p. 122-123.
Fonte –
Bereianos Apologética Cristã Reformada
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