Alguns apostatarão
da fé (1Tm 4.2).
Não fica muito claro se ele está falando dos mestres ou dos ouvintes, mas
prefiro tomá-lo como uma aplicação aos últimos, visto que prossegue tratando
dos mestres quando os chama de espíritos sedutores. É mais enfático dizer que
não só haverá quem divulgue os ensinos ímpios e corrompa a pureza da fé, mas
também dizer que não faltarão alunos que sejam atraídos para suas seitas. E
quando uma mentira aumenta sua influência, ela avoluma as dificuldades. Mas ele
não está falando de um erro trivial, e, sim, de um mal terrível, a apostasia da
fé, embora à primeira vista não pareceria ser tão mal assim à luz do ensino que
ele menciona. Pois como é possível ser a fé completamente subvertida pela
proibição de certos alimentos ou do matrimônio? Devemos, porém, levar em conta
uma razão mais ampla, ou seja, que aqui os homens estão inventando um culto
divino pervertido para a satisfação de seu ego; e ao ousarem proibir o uso de
coisas saudáveis que Deus permitiu, estão alegando que são os mestres de suas
próprias consciências. E tão logo a pureza do culto é pervertida, não permanece
nada íntegro e saudável, e a fé é completamente subvertida. Por isso, ainda que
os papistas debochem de nós, ao criticarmos suas leis tirânicas acerca de
observâncias externas, temos consciência de que estamos lidando com um assunto
seríssimo e importantíssimo; porque, assim que o culto divino é contaminado com
tais corrupções, a doutrina da fé é também subvertida. A controvérsia não é
acerca de carne e peixe, ou acerca das cores preto ou cinza, acerca de
quarta-feira ou sexta-feira, e, sim, acerca das más superstições dos homens que
desejam obter o favor divino por meio de tais futilidades e pela invenção de um
culto carnal, fabricando para si ídolos no lugar de Deus. Quem ousaria negar
que fazer isso é apostatar da fé?
Espíritos sedutores. Ele está se referindo a profetas
ou mestres, aplicando-lhes esse título porque se vangloriavam de possuir o
Espírito, e ao procederem assim estavam causando impressão sobre o povo. Em
geral, é deveras verdade que todas as classes de pessoas falam da inspiração de
uni espírito, mas não o mesmo espírito que inspira a todos. Pois às vezes
Satanás passa por espírito mentiroso na boca dos falsos profetas, com o fim de
iludir os incrédulos que merecem ser enganados [1 Rs 22.21-23]. Mas todos
quantos atribuem a Cristo a devida honra falam pelo Espírito de Deus, no dizer
de Paulo [1 Co 12.3]. Esse modo de expressar-se teve sua origem na reivindicação
feita pelos servos de Deus, a saber, que todos os seus pronun¬ciamentos
públicos lhes vieram por revelação do Espírito; e, visto que eram os
instrumentos do Espírito, lhes foi atribuído o nome do Espírito. Mais tarde,
porém, os ministros de Satanás, através de uma falsa imitação, como fazem os
símios, começaram a fazer a mesma reivindicação em seu favor, e da mesma forma
falsamente assumiram o mesmo nome. Eis a razão por que João diz: "provai
os espíritos, se realmente procedem de Deus" [1 Jo4.1].
Além do mais, Paulo explica o que quis dizer,
acrescentando: e doutrinas de demônios, o que eqüivale dizer: "atentando
para os falsos profetas e suas doutrinas diabólicas". Uma vez mais digamos
que isso não constitui um erro de somenos importância ou algo que deva ser
dissimulado, quando as consciências dos homens são constrangidas por invenções
humanas, ao mesmo tempo que o culto divino é pervertido.
Pela hipocrisia,
falam mentiras.
Se esta frase for considerada como uma referência aos demônios, então falar
mentiras será uma referência aos seres humanos que falam falsamente pela
inspiração do diabo. Mas é possível substituí-la por: "através da
hipocrisia dos homens que falam mentiras". Evocando um exemplo particular,
ele diz que falam mentiras hipocritamente, e são marcados com ferretes em sua
consciência. E devemos observar que essas duas coisas se relacionam
intimamente, e que a primeira flui da segunda. As más consciências que são
marcadas com o ferrete de seus maus feitos lançam mão da hipocrisia como um
refúgio seguro, a saber, engendram pretensões hipócritas com o fim de
embaralhar os olhos de Deus. Aliás, esse é o mesmo expediente usado por aqueles
que tentam agradar a Deus com ilusórias observâncias externas.
E assim, a palavra hipocrisia deve ser entendida em
relação ao presente contexto. Ela deve ser considerada primeiramente em relação
à doutrina, e significando que gênero de doutrina é esse que substitui o culto
espiritual de Deus por gesticulações corporais, e assim adultera sua genuína
pureza, e então inclui todos os métodos inventados pelos homens para apaziguar
a Deus ou obter seu favor. Seu significado pode ser assim sumariado: em
primeiro lugar, que todos os que introduzem uma santidade forjada estão agindo
em imitação ao diabo, porquanto Deus jamais é adorado corretamente através de
meros ritos externos. Os verdadeiros adoradores "o adorarão em espírito e
em verdade" [Jo 4.24]. E, em segundo lugar, que esse culto externo é uma
medicina inútil por meio da qual os hipócritas tentam mitigar suas dores, ou,
melhor, um curativo sob o qual as más consciências ocultam suas feridas sem
qualquer valia, a não ser para agravar ainda mais sua própria ruína.
Fonte – O Calvinista - 1 Timóteo, Comentários
Bíblicos, João Calvino
01/08/2014
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